21h. Telefone toca. Ela acorda, vê a imagem dele na tela e atende.
Ele: Eu não sei por quê estou te ligando. Mas eu precisava dizer que nada do que eu disse era mentira. Que eu te amo e sinto sua falta da hora que acordo à hora em que vou dormir.
Ela: Eu também. Sua ausência é uma doença sem cura. Tento somente conviver com ela. Tem dias que estou muito bem. Tem dias que estou muito mal.
Ambos choram.
Ele: Eu sei que é difícil entender, mas eu não menti sobre o que eu sinto. Só não deixa morrer o que a gente sente. Um dia ainda vamos nos encontrar.
Ela: As coisas só acontecem na hora que elas têm de acontecer.
E assim ele voltou pro estado de ausência.
E assim ela continuou no estado de inexistência.
Ao que parecia não havia mais nenhuma palavra a ser dita. Ele se fora. Era real.
Ambos choraram. Ela com lágrimas pesadas. Ele com sons abafados pelo violão.
A dor continua dentro dela. Todos os dias.
O vazio continua dentro dele. Causticante.
E assim, seguem. Com os pensamentos direcionados um ao outro.
Ele tentando se livrar do vício.
Ela esperando uma recaída.
"Não se afobe, não, que nada é pra já. O amor não tem pressa, ele pode esperar em silêncio."
Telefone. Toque personalizado. A canção de Chico César anuncia quem é.
- Oi, você queria falar comigo.
- Sim, queria lhe dizer que estou indo. Sem data de volta - ela diz com o coração apertado e uma lágrima pendurada no canto do olho esquerdo.
- E o que você quer que eu diga?
- Nada. Só queria mesmo lhe dizer - ela mente.
- Repentina essa decisão. Espero que saiba o que está fazendo
Ela pensa e lhe responde: - Estou indo porque preciso ficar longe disso tudo, preciso pensar, refletir sobre muita coisa em minha vida. Não o estou deixando.
- E o que você quer que eu diga?
- Nada. Não quero que você diga nada. - A lágrima cai. É mentira. Ela quer que ele lhe peça pra ficar. Que volte a dizer que a ama, que não quer ficar sem ela.
Ela precisa acreditar que todos os sonhos que viveram foram reais, que todo o amor que ele lhe devotara ainda existe. Saber em que ponto do caminho ele começou a se distanciar. Que ainda não acabou. Que é apenas um hiato em toda essa história.
- Canibais não comiam sua própria espécie apenas pelo sabor. Eles o faziam por outro motivo. Sabe por quê? - indagou ele enquanto depositava beijos e mordidas lascivas em meus seios semi desnudos no baby-doll.
- Sim. Eles criam que continuariam dentro de si as qualidades daqueles a quem devoravam - respondeu ela quase sem raciocinar com a sensação da língua úmida no bico túrgido.
- Verdade - ele a olhou por trás das lentes de um par de óculos frágeis. - Eu quero comer você.
- Desde que não me arranque pedaços - ela entregou-se amando-o lentamente enquanto ouvia algo sobre Pablo Picasso na tela esquecida da TV.
- O que eu sou?
- Verbo de transição. Já, já abre a porta para ir-se embora, o que é irregular. Mas deveria ser verbo de ligação, porque liga dois pronomes. Um reto, outro oblíquo.
Amar deveria ser verbo de ligação.
EU amo TU.