“...isto é verdade?”.
A pergunta pequenina parece dizer algo não só sobre o começo, mas sobre o filme como um todo, sobre a história que passa na tela como se fosse um texto de rádio comentado pela imagem. Imagem que ora se apaga para que apareça apenas a palavra e ora se ilumina para apagar a palavra ou descobri-la onde ela se esconde. Como se não quisesse aparecer nunca. Gravada na madeira de um trenó atirado ao fogo; no papel ainda na máquina de escrever da redação do Inquirer. E, principalmente, imagem que desde o começo pega a palavra para sugerir que é proibido ir além da forma imediatamente visível. Que não convém acreditar em tudo o que se vê no cinema. Na porta de entrada do filme, o aviso (no portão do castelo Xanadu) advertindo: No trespassing. Como a dizer que é exatamente um filme e para o expectador fique do lado de fora. Observando.
O filme tem início com a morte do milionário, jornalista Charles Kane, que em seu leito de morte pronuncia sua última palavra: “Rosebud”. A partir daí, a mídia especula se tal palavra teria um sentido muito importante na vida do magnata, justamente por ser sua última palavra. Com essa busca o espectador conhece a vida de Kane através dos fragmentos de momentos de sua história contados por meio de relatos dos velhos conhecidos da vida de Kane. Temos notícia então de sua vida desde a infância, quando morava com sua mãe em um humilde pensionato no interior, até seus últimos momentos em sua luxuosa e opulenta mansão.
Sua vida muda quando sua mãe recebe uma mina cheia de ouro e ele é educado por um grupo de empresários, que o moldam para a vida pública dos magnatas do poder. Ainda jovem, Kane compra um jornal e passa a se tornar um jornalista implacável e impetuoso. Sua vida se torna recheada de jogos de interesse, luxo e fama. Em sua velhice, Kane constrói para si uma enorme e esplendorosa mansão, batizada de Xanadu. Em homenagem à mítica cidade asiática, conhecida como a capital do prazer. É lá que, isolado de tudo e de todos, morre. Rosebud é revelado somente nos últimos segundos do filme, o que leva à reflexão não durante, mas após o término do filme. Rosebud é a motivação que o fez tornar-se do jeito que ele era. Um traço redentor nas motivações, atitudes e reações de Kane tornando-o uma figura humana e digna de compreensão. Rosebud é o coadjuvante de Orson Welles.
A pergunta é: O que passara pela mente de um homem como Charles Kane, que teve tudo em sua vida, para pronunciar uma única palavra, tão misteriosa, em seu leito de morte? Nenhum dos seus amigos íntimos ouviu em toda sua vida esta palavra, e não fazem a menor idéia do que isto possa significar. Toda a vida de Kane é passada diante dos olhos do espectador e com isso, em toda sua vida pública, repleta de escândalos e luxo, em nenhum momento é demonstrado claramente quem ou o quê é Rosebud e seu significado na vida do magnata. A cena final é, na verdade, a cena principal do filme. Kane está morto, extinto, e seus objetos particulares também. Quando o espectador assiste, impotente, à queima do trenó, onde está a chave de todo o mistério ao redor do qual a trama gira, percebe que não só ninguém descobrirá jamais o significado da última polêmica do magnata, como também que Rosebud é extinto junto com o personagem. A vida de Kane se foi por completo. E Rosebud também.
Deste modo, Welles faz com que o espectador seja o grande privilegiado, porque só este descobre o verdadeiro sentido da vida de Kane. Enquanto ninguém na trama jamais descobrirá. Isso também significa que é preciso estar fora da história para compreendê-la por completo. A vida só ganha sentido após a morte. Não para as personagens, e sim para o espectador, que é o único a ser totalmente excluído da trama, e é por isso que ele está privilegiado.
A maneira como Welles conta sua história pode ter seu lugar na literatura ou no palco. O mistério da palavra que só aparece o significado no final. Os recursos literários das descrições como na apresentação de Xanadu e a maneira como a morte de Kane, que era um editor de jornais, foi tratada no filme. Através de um ângulo jornalístico, por meio de flashes curtos e fragmentados. E também nos longos planos-seqüência de Cidadão Kane. Um pouco de teatro – na medida em que os atores conduzem a ação em continuidade, mais ou menos como se estivessem no palco, e em que a câmera convida o espectador a ver um espaço cênico determinado, a olhar de fora.
Welles inverte a questão que vigorava à época de que o cinema sonoro deveria ser pensado como o filme mudo acrescido de som. Ele pensa o cinema sonoro como o rádio acrescido de imagem. E para confirmar isto a sequência onde o repórter sai em busca de Rosebud, e telefona para o chefe depois de tentar, sem sucesso, um depoimento de Susan Alexander.
Dos elementos estéticos do filme é perceptível a cenografia que ajuda os movimentos e mis-em-cene de cada personagem, como se nada estivesse fora do lugar e os objetos nunca desviam a atenção. Até o cenário do castelo nos faz perguntar se existe mesmo ou se foi construído para as cenas. Everest Sloane, como Bernstein, retrata bem a simplicidade humana. A iluminação e a fotografia, embora o filme seja em preto e branco, complementa e acentua a narrativa. A câmera, fixa, vê com boa definição o que está bem perto e o que está afastado dela. A porta da cabine divide a imagem em três áreas verticais: na esquerda, lá longe, Susan meio embriagada, debruçada sobre a mesa do bar; no centro, de pé perto da cabine, um garçom; no canto à direita, ao telefone, o repórter. O personagem que fala é o que menos aparece em cena: está na sombra meio fora de quadro. E os personagens que melhor aparecem não falam nem se movem. O olho do espectador, então, quase não tem o que ver: escuta.
O que importa é prender a atenção do espectador na aparência primeira: na tensão entre a ilusão de realidade que vem da imagem do cinema e a realidade de ilusão que ela de fato é; na tensão entre o acreditar sugerido pelo sentimento e o não acreditar em tudo o que vê sugerido pela razão; na tensão entre a ficção como mentira livremente inventada ou como cine-jornal preso à reconstituição da verdade